Milton Santos uma vez disse que vivemos em um mundo confuso e confusamente percebido1.
Quando li essa frase pela primeira vez, ela ressoou profundamente em mim. Ressoou com minha experiência de vida na adolescência, com o início da minha juventude e continua a ressoar agora, que estou às vésperas de fazer trinta. Toda vez que eu penso nessa frase, eu digo para mim mesmo: é verdade.
Mas há algo de extraordinário em dizer algo, como o que Milton Santos disse. É que, quando Santos afirma que vivemos em um mundo confuso e confusamente percebido, o mundo começa a parecer pelo menos um pouco menos confuso para mim. O que a frase de Santos me diz é que não é minha culpa, se eu não estou entendendo muito bem o que está se passando no mundo – é que o mundo é confuso mesmo. Ler a frase de Santos me fez e me faz entender que, por achar o mundo confuso, estou pelo menos entendendo uma coisa sobre ele. De repente, não me sinto mais tão confuso assim, e nem me sinto também sozinho em minha confusão. Agora, tem pelo menos mais uma pessoa que concorda comigo, e esse é o professor Milton Santos.
Isso é algo formidável na linguagem humana. Nós nem sempre dizemos algo, mas quando dizemos, fazemos isso como uma tentativa de organizar o caos em que vivemos, e encontrar para ele algum sentido. Às vezes, não queremos comunicar esse sentido para ninguém, a não ser para nós mesmos. Mas quando escrevemos no papel nossos pensamentos, mesmo aqueles mais pessoais e rabiscados com a pressa de quem não pretende mostrá-los nunca a ninguém – mesmo nesses casos, há em nós uma esperança, ainda que ínfima, de que aquilo que escrevemos poderia fazer sentido não apenas para nós mesmos, mas também para alguma outra pessoa que, por ventura, encontrasse aquelas notas feitas com pressa. A linguagem, mesmo quando dirigida a nós mesmos, carrega em si o desejo de ressoar em outras pessoas, vencendo as barreiras do caos, preenchendo o mundo com sentido.
Outra coisa formidável na linguagem é que ela é, por excelência, o meio que encontramos, como seres humanos, para ver sentido na existência. Com efeito, mesmo a pessoa que diz não haver nenhum sentido na vida, enuncia essa frase com um sentido secreto: o de afirmar alguma coisa que afinal consiga fazer sentido, em meio ao caos. O simples gesto de falar abriga, em si, a esperança de ser entendido, e portanto, compartilhar com outrem aquilo que, para quem está falando, tem algum sentido.
Os filósofos discutem, interminavelmente, qual a natureza deste sentido, que transborda das palavras que os humanos falam o tempo inteiro. Se este é um sentido que existe por ele mesmo, e que nós apenas encontramos, como quem descobre algo curioso que estava escondido debaixo de uma pedra; ou se este é um sentido que nós mesmos construímos, pela própria linguagem. Não é essa a questão que quero discutir aqui. O que quero discutir é este fato fantástico que, em meio a um mundo extraordináriamente complexo – além de confuso, e confusamente percebido – somos capazes de encontrar para ele certa ordem, e que o principal meio para isso não é outro, senão pela palavra.
A filosofia, como a literatura, como todas as ciências, e mesmo as nossas mais despretenciosas conversas cotidianas, todas elas guardam isso em comum, umas com as outras. Como seres humanos, buscamos pela palavra organizar as nossas vidas, e subverter o caos que a todo tempo parece tentar engolir nosso tímido universo semântico. Seres vulneráveis, somos ora atravessados pelos acontecimentos mais inesperados, ou somos lançados ao um oceano em uma calmaria da vida cotidiana. Em um caso, como no outro, somos tomados pela insuficência das nossas respostas, tamanha é a complexidade que se esconde no mais tímido acontecimento, quem dirá, nos grandes. Mas ainda assim, ousamos a palavra, mesmo quando estamos diante de um mistério gigante, como quem tenta resolvê-lo, mesmo sem saber ao certo quão extenso realmente ele é.
Minha relação com a leitura e com a escrita parece ter sido, desde muito cedo, uma espécie de luta de Davi (a palavra) contra o Gigante Golias (o mistério da vida). Curioso é que meu encontro com os livros de filosofia só se deu de modo muito tardio, já na minha juventude. Durante muitos anos, eu não conhecia outros livros, a não ser os livros escolares (que eu não lia), e os livros de literatura. A leitura de literatura então pra mim sempre foi uma forma particular que eu encontrei de me defrontar com a forma com que outras pessoas se defrontaram com o mistério da vida. A escrita literária, consequentemente, sempre foi a forma que eu tive de defrontar-me, eu mesmo, com esse grande mistério – o Grande Desconhecido. Hoje, depois de tantos anos de estudo, estou convencido de que estava certo em ver a literatura desse modo.
Fato é que apenas muitos anos após já ter me familiarizado sobremaneira com a leitura literária, descobri que havia uma outra forma de me defrontar com o mistério da vida, através de uma linguagem que não fosse exatamente metafórica (ou pelo menos não a maior parte do tempo) – eu descobri que, assim como há livros de literatura, também há livros de filosofia. Essa descoberta, que pode parecer tão banal, foi para mim como uma grande revolução em minha vida, e meu interesse como leitor, que até então se dirigia apenas para a literatura, foi dirigido praticamente por completo para a filosofia. Como consequência, meu interesse na escrita também se dirigiu, quase exclusivamente, para o campo da escrita filosófica, em interface com a escrita científica, mas não sem expressar as marcas literárias, que atravessaram profundamente a minha escrita. Minha dissertação de mestrado, penso, revela muito bem isso2.
Então essas duas grandes influências atravessam profundamente minha experiência com a leitura e com a escrita: a literatura, por um lado; pelo outro, a filosofia. Duas formas de encontrar ordem em meio ao caos, sentido, em meio à confusão. A filosofia e a literatura parecem, para mim, como o verso e o anverso da página; parecem ser uma, o averso do tecido da outra. Quando escrevo filosofia, o faço como se estivesse contando uma história, e quando conto histórias, as faço como se estivesse investigando com profundidade a realidade da vida.
Esse substack, eu quero fazê-lo com que seja assim: um jogo dialético entre a literatura e a filosofia. Na minha prosa e na minha poesia, quero expressar as verdades profundas da vida; meu pensamento filosófico, quero narrá-lo descrevendo a dor e a beleza que há nessa mesma vida. Mas acima de tudo, quero ousar a palavra que, diante do caos, acenda a luz do sentido – e que como um vaga-lume, esse sentido encontre alguém, em meio à escuridão, que possa por ele se guiar, como eu me guiei pelos vaga-lumes que outros escritores lançaram, vencendo a barreira do caos, pela luz do sentido.

Ver o livro “Por uma outra globalização”, de Milton Santos.
Minha dissertação teve como título “Educação, espiritualidade e sentido da vida: narrativas de voluntários do Instituto Allan Kardec de Estudos Espíritas”. Pode ser encontrada online, no repositório da UNEB.